terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Ai se eu te pego: Como fazer sucesso dizendo bobagens


Posso não ter idade para lembrar das pérolas da música sertaneja. Na verdade, nunca gostei muito do gênero, embora reconheça sua importância para a cultura brasileira. A contribuição das duplas cantando à moda de violas suas canções bonitas, as quais retratavam o cotidiano de pessoas simples, ficou marcada na história do cancioneiro nacional.

Lamentavelmente, na década de 1980, música sertaneja virou melodia de marido traído (para evitar um termo popular de baixo calão). O fio de cabelo (“pedacinho dela que existe”) não apenas representou o ápice do sucesso do sertanejo nesse período, como mostrou o poder de apelo de uma letra cafona: mais de um milhão de copias vendidas!

Na década de 1990, sertanejo virou outra coisa: saíram de cena as paragens interioranas para dar lugar à vida da cidade. A natureza e o cotidiano simples sairam de cena e as letras remetiam a apartamentos, celulares e aviões, ambiente no qual mudava-se o contexto, mas não o tema: sempre a falta da mulher amada! Na mesma época, versões de Rock romântico receberam o vibrato dos cantores do gênero, relegando o sertanejo para o lado brega da força. Finalmente, surgiram em anos mais recentes anomalias como o sertanejo universitário (uma espécie de paradoxo que desafia sociólogos e musicólogos). A inocente música sertaneja se fundiu com axé, com samba, com música romântica, com pop e… deu no que deu!

As letras? Mais pobres do que nunca. Paupérrimas. Do rancho fundo mudamos para o meteoro da paixão. É o fim! E agora a coisa piora: Michel Teló, um cantor cujo sucesso vem crescendo, lançou a balada sertaneja. Uma das canções (?) do paranaense tem por título Ai se eu te pego (assim você me mata). O hit faria Tonico e Tinhoco chorarem – ou de tristeza profunda ou pela hilariedade em face de tamanho simplismo. É por aí: quando você pensa que a música popular desceu até o fundo, alguém ainda consegue mostrar que o buraco pode ser maior. A música de Teló, que ganhou repercussão internacional graças a coreografia imitada por jogadores de futebol (incluindo o craque Cristiano Ronaldo), é um sem-pé-nem-cabeça vergonhoso.

O contexto? Uma balada (estranho para um sertanejo…). A situação: um rapaz vê uma moça bonita e se encoraja para se declarar a ela. Engana-se quem pensou que ele lerá um poema de Vinicius ou tentará conhecer a bela. Ao invés disso, ele declara sem pudor: “Nossa, nossa/Assim você me mata/Ai se eu te pego, ai ai se eu te pego//Delícia, delícia/Assim você me mata/Ai se eu te pego, ai ai se eu te pego”. Além do erro de Português digno de um aluno do segundo ano do fundamental (concordar “você” com “te”), o mal gosto é evidente.

Eu fico me perguntando o que passa pela cabeça de uma mulher que aceita ser chamada de “delícia” e ouvir de um marmanjo arfante que ele quer pegá-la. O tal "pegar", expressão que já é comum, apenas reforça a ideia de mulher objeto. Ora, mulher não é para ser pega, como uma coisa, mas para ser tratada com carinho, com respeito. Como se vê, para o sucesso não é preciso muito cérebro. Para quê ler Manuel Bandeira ou Celília Meirelles? Para quê a poesia de Almir Sater ou o toque de Tom Jobim? Tudo isso é passado – vamos nos alimentar com a sabedoria de Michel Teló, esse Shakespeare da sanfona, verdadeiro ícone da inteligência nacional. Ou da falta dela.

Fonte: Texto original por: Douglas Reis - Publicado em  Questão de Confiança.


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